terça-feira, 23 de outubro de 2012

ARTE-EDUCAÇÃO

Em um mundo em que tudo precisa assumir função concreta, mensurada, quantificada e convertida em números, fica mais difícil ainda advogar a arte como algo necessário à formação e à existência humana. Não se bebe, não se come, não se cura uma dor física, não se constrói um encanamento ou uma rede de esgoto por meio de uma ficção, uma pintura, uma música. E de tão formatados nessa perspectiva, percebemos os grandes saltos de violência, depressão, suicídio, uso de drogas se alastrando mundo afora.
Não, a arte não é remédio, nem solução para nada. Sua atuação está na base íntima do ser humano, na reflexão sobre o existir e estar no mundo, na discussão profunda, na empatia, no despertar e desenvolver dos afetos e campos emocionais minados. Pode-se até oferecer uma profissão por meio da arte. Todavia, a arte é educar pela sensibilidade. Ande pelas ruas, investigue e verá que o senso comum postulará que qualquer expressão artística é para quem é eleito, preparado, não é para a ralé rústica, ignorante, embrutecida. Como se explica, então, que até os zumbis-craqueiros andem pela rua cantarolando alguma coisa? A atenção dada às novelas? Ao quadrinho pendurado no barraco de lona?
Toda e qualquer forma humana de vida tem em seus genes o senso estético, a busca pela estesia, o gosto criativo. O que falta é expor essa predisposição a uma variedade de referências, possibilidades, conhecimentos, que ofereça às pessoas a possibilidade de entenderem melhor a própria cultura e a alheia. Na minha experiência como professora, nunca uma turma deixou de se render a uma boa história. É humano.
O que motiva, toca, os temas e abordagens do objeto artístico terão infinitas diferentes recepções porque a experienciação da arte amalgama-se com a experiência do indivíduo, consolida-se em uma teia capaz de fazer novas sinapses ao longo da evolução biográfica e intelectual de cada um que se propõe a avançar.
Se choramos ao assistir a um filme, se nos enraivecemos, se nos recusamos, se rimos, tudo é uma experiência real. Você, do lado de fora da tela, respirando e existindo no mundo concreto das coisas, apresenta reações verdadeiras motivadas pela ficção, pela ilusão gerada por um time de artistas. E o que é verdade e o que não? Traçar esses limites é uma tarefa grandiosa com grande tendência a nunca acabar.
O cinema na arte-educação não pode ser um pretexto para outras coisas, não pode ser um passatempo, uma forma menos tediosa de se passarem as horas de aula. Tem que ter propósito e a convicção de que habilidades imprevistas serão despertadas. Tem-se que entranhar o filme na proposta de sala de aula, fazê-lo pertencer a aquele ambiente, gerar emoções. Em uma época tão maniqueísta e pragmática, falar de emoções é entendido como fraqueza, enrolação, mimimi. O professor não pode temer os sentimentos e, por isso mesmo, deve encará-los em sala de aula, pensá-los, ajudar seus sujeitos-alunos a elaborarem sua complexa vida interna pela linguagem, que é a racionalização e concretização dessa névoa que nos povoa. Nesse sentido, não basta fazer rir e chorar, mas pensar o riso e o choro. Há que se estar preparado para isso.
Cinema é contar uma história. Tão ancestral quantos os primeiros encontros construídos na linguagem. Estudar um filme é construir histórias, gerar experiências. Esse fim de semana, assisti ao HOTEL TRANSILVÂNIA com meus filhos. Havia vampiros, monstros, coisas nojentas e bem ao gosto da criançada. Houve muitos risos, muita diversão. Entretanto, o bom do filme mesmo é o dia seguinte: "Mamãe, aquele vampiro parecia você". "Por quê?". "Porque ele ficava doido quando alguém se aproximava da filha dele". "Mas a mamãe só cuida de vocês". "Mamãe, que bom que você é um monstro legal". Tudo bem, talvez eu precise de ajuda especializada para elaborar isso melhor, mas aquilo era um elogio. Um elogio dessa geraçãozinha que está chegando e que não tem medo de bicho-papão, de elementos de outro mundo, de espíritos e afins. Essa molecadinha só vai sentir medo mesmo com questões ligadas à violência de casa e das ruas. Olha como os zumbis estão na moda.
Porque essa geração está muito mais preocupada com a imortalidade desses personagens que com o medo que eles inspiram. Vampiros bonzinhos, lobisomens apaixonados, Frankensteins angustiados são a tradução de uma época. Uma época que está tentando tanto se higienizar no cinema que talvez os games acabem se convertendo em nova válvula de escape. Como educar o indivíduo em sua configuração afetiva se existe uma campanha midiática imensa de que sentir raiva é errado, querer que alguém se ferre é pecado mortal. Ora, ninguém é bom o tempo inteiro. O que nos separa dos psicopatas é que nosso desejo de matar alguém é dominado pela consciência, pelo sentimento de culpa, pela razão, pelo sentimento religioso, por n mecanismos diferentes de controle dos instintos. Controle. Porque zerar esses gritos primitivos é impossível.
O que fazer? Daí a volta dos heróis ambíguos, do homem de ferro, dos X-men, é o imaginário tentando quebrar os extremismos e trazer a arte para os dramas mais humanos. Mesmo que com superpoderes incompreendidos. Mesmo que se queira evitar o tempo e o amadurecimento, eles vão chegando devagar. E começamos em nós a nostalgia da criança vendo aquele filme. O mundo dos adultos não é tão mais difícil que o universo das crianças. Aqueles estão menos receptivos.
Daí a minha tese que uma geração educa a outra e não necessariamente na ordem do mais velho para o mais novo. E a arte educa a todos. Seja na percepção de seu próprio tempo, de si mesmo, do outro. E ela também deseduca. Ela também é utilizada pelo preconceito, pela alienação, pela manutenção de poderes de uma elite. A novela global, por exemplo. Cabe a nós, do lado de cá da tela, sabermos como construir as conexões com cada uma obra que se nos apresenta. O cinema não é bom nem é mau. Como os seres humanos. Ainda assim, sua funcionalidade artística pulsa forte cada vez que um filme se apresenta. Percebê-la é parte da tarefa de ensinar.
Proponho uma pergunta: como trabalhar com os afetos em sala  sem parecer aula de educação moral e cívica? Como identificar competências e habilidades possíveis de ser trabalhadas em determinado filme? Comece pela criatividade e depois venha aqui contar.




Um comentário:

  1. Dificil a tarefa de educadores se proporem a aprender. Agora com tantas questões óbvias , mais só agora percebida as coisas mudam de forma e tomam novos caminhos , o caminho do descobrimento do experienciar novos caminhos.
    Obrigada professores.

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