quinta-feira, 15 de novembro de 2012

A CRIANÇA MORTA

O grande delírio contemporâneo está em transformar a infância em laboratório corporativo. Preparar para a vida implica aprender línguas estrangeiras, competir e ganhar, ser atleta e alcançar um ideal de beleza, não ter falhas, frustrações e sofrimentos. O outro é animal a ser abatido. Maldade. Das grandes. A ânsia dos pais em preparar seus filhos para serem bem-sucedidos, grandes profissionais, gente endinheirada amparada pelas trincheiras do consumo contra as vicissitudes está gerando uma leva de pessoas que não terão passado pela primeira e fundamental fase da vida com leveza.
É um campeonato, não é mais a vida que segue. Crianças de quatro anos já estão oprimidas com a ideia do vestibular, com alcançar emprego e padrão de consumo. É culpa dos adultos que, ao invés de resolverem seus próprios dilemas, os despejam nos filhos. Sim, as estruturas familiares se modificaram, a figura da avó, da tia que cuidava dos filhos das mulheres que trabalhavam estão deixando de existir. Todas estão no mercado, ou geograficamente distantes, ou a família encolheu. Então, terceiriza-se a educação de nossos filhos a escolas, creches, babás, aos estranhos pagos para isso. E os pais, chegando em casa, exauridos pelo trabalho, não se ocupam muito em conviver com as crianças, que, para chamar atenção, começam a brigar, chorar, dar birra, quebrar tudo. E os pais terceirizam psicólogos, psiquiatras para resolverem as crises de seus filhos. E trabalham mais, para pagar mais gente terceirizada para os seus filhos. E cobram grandes resultados de todos. O menino tem que ler e escrever feito Rui Barbosa, ter notas altas, desempenho de alta performance e, se não der certo, culpa do pessoal pago para isso.
Há pais que não estimulam a fantasia, o lúdico, a brincadeira, o personagem porque "a vida lá fora é dura e a criança tem que ser preparada", que preferem que o filho pequeno assista desenhos o dia inteiro mas que não compre a brincadeira de imergir nesse universo. E compram brinquedos pedagógicos, traquitanas eletrônicas  barulhentas e cheias de luzes "para estimular o raciocínio". E o brincar porque é divertido? Para rir? Tudo ficou de propósito.
Não se pode brincar por brincar, não se pode rir apenas porque foi engraçado, não se pode fazer amigos de infância porque eles serão os rivais, não se pode dormir a tarde e nem ser protegido das notícias de guerra e assassinatos cotidianos. Afinal, isso é a vida. Será? A vida e o que se constrói com ela é em muito marcada pelas escolhas e perspectivas aplicadas aos fatos. Que horror gerar seres humanos focados na desgraça. Mata-se a criança, mata-se a criança do adulto, mata-se a leveza e nos tornamos todos bichos burocráticos. Um pai não pode conversar despretensiosamente com seu filho, deve aplicar sermões e lições de moral constantes. E tudo vira um discurso sem fim de preparação para a guerra.
Claro que desejo que meus filhos vivam com conforto, mas quero, antes de tudo, que sejam felizes. Não aquela felicidade irreal de estar em um mundo perfeito, mas aquela gerada por um universo interior equilibrado, pela atitude de estar na vida sem pânico, de respeitar o tempo e ritmo pessoais ao invés de mutilá-lo na pressa e na aceleração cada vez maior. Em uma sociedade de altas exigências de mercado, proponho a paciência, a profundidade, o olhar sem a náusea da velocidade. Proponho desligar o carrossel e que se quebre esse ciclo dos ditados econômicos construírem pessoas e não o contrário.
O mundo adulto pertence aos adultos e a sua maturidade psicológica de lidar com ele. Deixemos as crianças vivenciarem o seu momento. Tenho comigo que as boas experiências fundam muito mais profundamente o equilíbrio, nos preparam muito melhor para não sucumbir que a sombra do mal cotidianamente cultivada. E não menosprezemos a capacidade de inferência, compreensão e análise dos pequenos. Caso contrário, como uma criança de apenas quatro anos poderia dizer, depois de assistir a um episódio do Bob Esponja, "Como ele é bobo, né? E olha como ele é feliz!"

Um comentário:

  1. Bem assim que acontece mesmo. Eu trabalho com crianças e infelizmente vejo muitas assim!

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